É meio estranho ver um filme que trata (metalinguisticamente) de sonhos e sentir muuuuuita falta deles. Isso resume o que eu senti ao ver o incensado "A origem" ("Inception"), de Christopher Nolan. Será "A origem" um oxímoro?!
Simplificando, podemos tratar os sonhos (ou qualquer coisa) de duas maneiras.
1 - Somos denotativos e tratamos objetivamente o nosso assunto em questão. Algo tipo "vovô viu a uva". Aí, é correr pro Aurélio e tascar: sonho - "sequência de fenômenos psíquicos que involuntariamente ocorrem durante ou sonho", ou "sequência de ideias vagas, mais ou menos agradáveis, mais ou menos incoerentes, às quais o espírito se entrega em estado de vígilia", ou ainda "aquilo com o que se sonha".
Opa, minha primeira perguntinha. Com o que sonham os protagonistas de Inception? A tecla na qual mais se bate é a da culpa, a grande obsessão de Cobb, o protagonista. E tome sonho atormentado, angustiado, desculpem-me, tão repetidamente angustiado, que tornam-se chatos e óbvios estes sonhos. Tá bem, o filme traz insights sobre sonhos compartilhados, sonhos lúcidos e tem como personagem uma arquiteta (da informação?) que ousa e "produz" um sonho arrebatador de uma Paris quase antropofágica de tanta beleza, mas, caramba, é uma exceção no conteúdo e no timing do filme, porque é incidental e aparece por alguns minutos apenas. O restante, à exceção da sacação dos sonhos compartilhados (desperdiçado pelo conteúdo pra baixo - compartilhar coisas boas, já pensaram, que sonho!) e do final (o único momento que me peguei sonhando de verdade, mas, de novo, apenas por alguns minutos), resume-se à culpa, angústia e ...tiros.
Dizem que a pancadaria veio a reboque do $$ investimento. Tiro pra cá, tiro pra lá, bazucas, explosões a dar com o pau. Sequência tão longas de ra-tá-tá-tá, que a gente esquece até que filme está vendo. Eu que não curto filme de ação e muito menos sonho com matanças, achei chaaaaaaaaato. Já em
Matrix (o I, né?), as cenas de ação, aí, sim, incidentais, não se apropriam do conteúdo a ponto de torná-lo secundário e incompleto.
Nesse quesito denotação, também senti falta dos coleguinhas Freud, Jung & Lacan. Podiam ter caprichado mais nos sonhos compensatórios, já que Cobb se sente tão culpado; ou ter lançado mão dos sonhos premonitórios, já que
Matrix é uma citação obrigatória. Mas Nolan fica devendo a estes que já sonharam o futuro no cinema: desde Fritz Lang até os irmãos Wachowski.
2 - Agora somos conotativos, e tratamos nosso assunto sonho da maneira como ele é mais corriqueiramente usado: uma metáfora de algo espetacular.
Aurélio
strikes again. Sonho - "aquilo que enleva, transporta, pela extraordinária beleza natural ou estética"; "coisa ou pessoa muito bonita: visão"; "o que é produto da imaginação: fantasia, ilusão, quimera."
Aí é que o bicho pega de vez. Tirando as tais exceções (sonho parisiense da arquiteta e sonho final), onde estão os sonhos neste filme?!
Help! Onde está o que de melhor desejamos para nós mesmos e para os outros e da melhor maneira possível?
Por isso, "A origem" me soou como um oxímoro, porque é um filme que fala de sonhos que não estão lá.
O conteúdo onírico de Cobb, apoiado na estética dos videogames, é um mundo que vai afundando em níveis (tenebrosos) e camadas (dantescas) para emergir em uma burlesca puxada de tapete de um empresário "otário".
Deceiving.
Mal, a mãe dos filhos de Cobb, desculpem-me de novo, a mulher que se ocupa de empurrá-lo pro fundo do poço, é mala. Lamúrias, chorumelas, que se repetem
ad nauseam. Ok, não estão remediadas, então não estão remediadas. Ponto. Dizer isso a toda hora é ...chato. E só.
O totem, o objeto "inserido" no filme como uma vinheta para indicar ao espectador quando o sonho é de Cobb, carece de sutileza. Já imaginarm David Lynch plantando um objeto para deixar evidente que a cena final é um sonho? Not!
Compara-se "A origem" com "Matrix". Está certo que "A origem", onze anos depois, apoia-se sobre o
insight dos sonhos compartilhados, da inserção da arquitetura da informação no universo criativo e dos sonhos lúcidos. Mas só isso, onze anos depois, é muito pouco. Muito
insight correu por debaixo da ponte. Já, em antanho, "Matrix" desloca-nos de nossas reles realidades subjetivas para a possibilidade de uma realidade objetiva compartilhada. "Matrix" é puro sonho que se realiza.
É claro que tudo é uma questão de gosto, que eu criei a singela expectativa de ver um filme sobre sonhos e acabei vendo outra coisa, diferente. Nem é tão ruim assim se eliminarmos as longuérrimas sequências de um bangue-bangue melancólico, porque banaliza à exaustão um mundo que se alimenta de violência como entrenimento. Só não funcionaram como um sonífero para mim, por causa do áudio das armas enlouquecidas.
Confesso que deu um certo desânimo, quando os personagens se vêem "presos" em uma das camadas de sonhos, porque algo deu errado e eles não contavam que o subconsciente de já não me lembro quem estivesse militarizado. Era um gancho para as tais sequências longas de tiroteio.
"Subconsciente militarizado"? De quem estamos falando, cara-pálida, de George W. Bush?
Não encontrei sonho na mente atormentada de Cobb. Tampouco em sua cidade erguida à beira-mar, onde os arranha-céus multiplicam-se e esfarelam-se, sem espaço para que qualquer planta surja do asfalto. Me senti no vácuo dos sonhos que sonho, porque "somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos". É simples, não desmereço os sonhos de Cobb, nem o que é sonho para Nolan, apenas são diferentes dos meus*.
Paródia de
Inception em 30 segundos no You Tube (hilária!):
ImagemDeu na Revista Megazine, de 07/09/2010, que uma das inspirações de Nolan teria sido uma história do Tio Patinhas. Opa! Via @telionavega
* Trecho de poema de John Keats, citado por Felipe Hirsch, em 06/09/2010
"Colocaria o mundo a teus pés, mas sou pobre e tenho apenas sonhos, quero estendê-los a teus pés, pise com cuidado, são meus sonhos."