Tuesday 25 May 2010

Gordon Matta-Clark, um homem inteiro

Gordon Matta ClarkGordon Matta-Clark (esse bonitinho aí de cima) partiu casas condenadas ao meio, comprou terrenos de 25 cm, ofereceu ar "de graça" aos passantes em Wall Street, boicotou a Bienal de São Paulo e pretendeu explodir um pedaço do Muro de Berlim; amigos o demoveram e ele fez uma "peformance" no local da malograda explosão. Isso tudo nos anos 70.

A obra de Gordon Matta-Clark tem um vigor e um ímpeto contagiantes de salvaguarda do coletivo. Foi com esse espírito que eu saí da sua exposição no Paço Imperial, no Rio de Janeiro (de pé até 25 de julho). Homem nenhum é um ilha, você é o que você compartilha, não dá mais pra mercantilizar moradias, privatizar o coletivo, sair no bloco do eu sozinho. Me lembrei do "Zero Dólar", do Cildo Meirelles, dos discursos de Leonardo Boff, da câmera na mão de Glauber Rocha.

Mais do que isso, fiquei com a sensação de que o legado do moço, morto prematuramente aos 36 anos, é esse mesmo: não dá pra continuar assim, mas dá pra mudar tudo.

Algumas obras que destaco:
Em "Fresh air" (1971, em parceria com o videasta Juan Downey), Gordon Matta-Clark oferece oxigênio a passantes em Wall Street. Já lá se vão 35 anos e a sensação de espanto e desconforto são os mesmos. Estamos mercantilizando a natureza...
Uma série de fotos de terrenos demarcados por Gordon, que na verdade eram micro-terrenos que ele comprou junto com um amigo para... [refletirmos sobre a razão da existência das mansões e sobre a mercantilização da utilização da moradia]...
O vídeo de Gordon fazendo a sua perfomance no Muro de Berlim.
"Splitting" (1974), o vídeo de Gordon partindo uma casa condenada ao meio.
Seus cadernos de desenhos.
As fotos com o pai também artista plástico Roberto Matta e o irmão gêmeo (também morto prematuramente aos 33 anos).

Fontes:
Imagem: blog do Programa de Pós-Gradução da Faculdade de Arquiterura e Desenho de Bio-Bio, no Chile (post muito bacana)
Matéria do JB Online, de 06/05/2010
Bravo!, março de 2010, Gordon Matta-Clark, o homem que fatiava prédios

Saturday 15 May 2010

Comunidade

Três, foto de Isabella Lychowski
Comunidade
por Franz Kafka

Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôs-se junto a entrada, depois veio, ou melhor, dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-se, dizia: os cinco acabam de sair de casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre a se intrometer.
Não nos faz nada, não nos incomoda o que já é o bastante; por que se introduz por força ali onde não é querido. Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tão pouco nos conhecíamos antes, e se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível e nem tolerado com respeito àquele sexto. Além do mais, somos cinco e não queremos ser convivência permanente, se entre nós cinco tão pouco tem sentido,
mas nós já estamos juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isso ao sexto, posto que longas explicações implicariam em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não aceitar. Por muito tempo que franza os lábios, afastá-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.


Comunidade, conto de Franz Kakfa, tradução de Torrieri Guimarães. Frankfurt, 1952.

Saturday 1 May 2010

Para Maria da Graça

Alice Liddell, que inspirou Lewis Carroll em seu Alice no País das MaravilahsPara Maria das Graças, por Paulo Mendes Campos*

Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.


A realidade, Maria, é louca. Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?" Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira. A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.


Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo. Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave. A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gosta de gatos, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?"


Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou ?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste. Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.


Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente. E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.


Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões. Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas". Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

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A primeira vez que li "Para Maria da Graça" prendi a respiração e pensei que nunca mais iria soltar. Eu estava diante de algo muito grande, tão grande que sequer podia divisar o seu contorno. Talvez como Alice, e essa hipótese deve ser a mais provável, eu devo ter diminuído de tamanho e a crônica ficou tão grande que eu fiquei sem saber o que fazer com ela.

É claro que mais adiante eu soltei a respiração em um grande suspiro, aumentei e diminui de tamanho inúmeras vezes e guardei o texto em algum lugar na "parede da memória". Estava ali, bem esquecidinho, até que o hype em torno de Alice em 3D [ironia?!] trincou a parede e o texto voltou.

Desta vez a minha respiração permaneceu inalterada, enquanto eu me pegava sorrindo. Que achado! Em tempos de Internet e compartilhamento, um texto como esse tem mais e que levantar poeira.
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Fontes
Letraselivros [crônica online]
Alice [Alice Liddell, que inspirou Lewis Carroll]
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll
"Para Maria da Graça", crônica de Paulo Mendes Campos, publicada originalmente em "O colunista do Morro", Ed. do Autor, 1965, e também disponível na coletânea "Para gostar de ler - volume 4 - Crônicas", Ed. Ática, 1980.
*Nessa crônica, Paulo dá de presente de 15 anos o livro "Alice no País das Maravilhas" para sua amiga Maria da Graça. E explica porquê.