Friday 24 September 2010

Festrio, diário de uma cinéfila

Festival do Rio, foto de Isabella Lychowski

13/10, dia 8, "O último de sonho de Pina Bausch" ("Tanzträume – Judgendliche Tanzen “Kontakthof” von Pina Bausch, em alemão ou "Dancing Dreams – Teenagers Perform “Kontakthof", em inglês), de Anne Linsel e Rainer Hoffman, Alemanha, 2010

O doc imita a vida. Os 40 adolescentes que a coreógrafa Pina Bausch selecionou para montarem o balé "Kontakthof" sequer tinham ouvido dela falar. Eram neófitos da dança, garotos socraticamente ignorantes, que, ao longos dos ensaios e do filme, desabrocham em um intenso e sublime processo junguiano de individuação. Cada um se descobre um mundo, uma pérola, ao mesmo tempo que se encontram uns através dos outros. "Tanzträume" é uma edição e colagem dos dez meses de ensaios acrescido de umas poucas cenas da estreia e de várias entrevistas com os garotos, as duas assistentes de Pina Bausch e ela própria, registros que acabaram sendo os seus últimos filmados. Pina Bausch faleceu em junho de 2009.

Ter assistido a este filme foi um experiência saborosíssima, riquíssima e encantadora. Recomendo a todos os amantes da arte. A sensação mais forte que me ficou, entre tantas, foi a de me reconhecer igualmente nos garotos, nas assistentes e em Pina Bausch. Deve ser como no filme "Bebês", que ainda não vi. Somos todos possíveis e os mesmos em nossas particularidades.

À saída da sessão, entreouvimos a senhora que disse, "eu veria 20 vezes esse filme". Fica a dica.

10/10, dia 7, "A oeste de Plutão", Canadá, 2010
Não tenho muito o que falar sobre o filme, achei tão ruim, que saí no meio.

06/10, dia 6, "Tio Boonmée, que pode recordar suas vidas passadas", Apichatpong Weerasethakul (Reino Unido, Tailândia, França, Alemanha, Espanha, 2010)

Sítio do Pica-pau Amarelo [comentário entreouvido no cinema: ah, então é tipo um Sítio do Pica-pau Amarelo?!, rs] tailandês. Gostei muito deste filme, que conta uma história comum de forma incomum, se temos como ponto de vista o senso comum; ou de forma comum, se temos achamos que o sobrenatural faz parte de nossas vidas tanto quanto o palpável. Tio Boonmée mora num sítio e está doente. Não tem muitos dias de vida. A narrativa está imbuída em mostrar o dia-a-dia de Boonmée de modo sereno e calmo entre os seus entes queridos, vivos ou mortos. A naturalidade com que apresenta os personagens, sem desenhar linhas que separam vivos de mortos, é espetacular. Me lembrei várias vezes de David Lynch. Como gosto desses autores que mostram o mundo invísivel como parte integrante do mundo visível! E com que maestria. O filme tem várias cenas geniais. Como Boonmée está em fase de divisão de bens, que não são muitos, rola um certa mesquinharia no lado dos vivos. Aí tasco a frase que o narrador diz em algum momento em off e que pra mim é a chave do filme: "as questões terrenas nunca param de surpreender". Falou e disse.

02/10, dia 5 "Cópia fiel", de Abbas Kiarostami (França, Itália, 2010)

Embate filosófico + DR fake. O que estou escrevendo aqui é uma cópia fiel do texto de outra pessoa que viu o mesmo filme que eu. Essa pessoa não sou eu, mas eu a copio, o que tem o mesmo valor que o texto original. Tudo é original, nada é cópia, porque cada percepção de algo tem o seu valor ao mesmo tempo único e reproduzível. [Ou não, diria Caetano e todos os outros que discordam de mim]; [Ou sim, diria Borges e seu Pierre Ménard]. O que é originalidade? Ela de fato existe? Essa premissa/proposição filosófica aplicada na arte é o tema central de "Copie conforme", o aclamado livro de James, o personagem principal. A personagem de Juliette Binoche é a da moça que assiste à palestra de James e com ele sai pra dar umas voltas. Rola um clima, inicialmente um embate filosófico entre os dois, ainda sobre o mesmo tema, que desemboca em um outro embate. Juliette seduz James para que ele faça o papel do seu ex-marido, que não age com ela como ela acha que ele deveria agir. Desse momento em diante, o filme se torna uma DR e uma grande repetição.


29/09, dia 4 "Nostalgia da Luz", de Patricio Guzman (Chile, 2010)

Raspas, restos e estrelas me interessam. Doc poético+denúcia. O deserto do Atacama, no Chile, é a única área marrom no planeta Terra (à época da constatação de Gagarin - "a Terra é azul" -, o Google Maps sequer era sonho). Tal efeito se dá por conta da ausência de umidade nessa região. A transparência do ar, única nesse clima seco, promove a limpidez do céu e das terras e os estabelece como terreno privilegiado para astrônomos, arqueólogos e familiares de desaparecidos políticos. Ah, sim claro, e para o documentarista Patricio Guzman. Do ar seco que reúne os grupos, Patricio extrai a liga poética entre frases e imagens despudoradamente belas. Rochas e estrelas desfilam perante nossas retinas como em um balé primordial; pausadamente, graças ao seu ritmo perfeito, nelas nos reconhecemos: humanos. Mas eis que surge a primeira denúncia e todo esse ritmo toma outro rumo. São denúncias contudentes, urgentes e importantíssimas sobre a ação do governo de Pinochet contra seus opositores. As falas dos entrevistados alongam-se, a poesia desaparece. Somos então conduzidos aos horrores que a humanidade foi capaz de produzir. Mas a esperança não morre e a poeira das estrelas volta a coalhar nossas retinas, nossa calma, nosso porvir.

"Sempre acreditei que nossa origem estava no solo, mas agora acredito que pode estar muito acima, na luz das estrelas." Patrício Guzman

26/09, dia 3, "Minhas mães e meu pai", de Lisa Cholodenko (Eua, 2010)

Comédia romântica. Duas mulheres casadas há muito tempo têm dois filhos com um mesmo doador de sêmen. Tudo vai nos conformes até que um dos filhos resolve conhecer o pai. O carinha vem chegando todo jeitosinho e traz reviravoltas ao status quo. Como toda comédia romântica, o filme tem a sua dose de doçura, bom humor e cenas engraçadinhas, mas também tem uma dose de chatice. É um filme legalzinho, mas não a tal Brastemp que andam anunciando. [Há quem ache inovadora a normalidade com que se apresenta o casal, mas o fato é que é normal, hello, século XXI, então a "sacada" de tratar como inovador o que é normal, deixa o filme previsível e arrastado, principalmente no terço final].

25/09, dia 2, "Terça depois do Natal", de Radu Muntean (Romênia, 2010)

Não te perdoo por me trair. Casal comum tem crise conjugal comum, porque o marido tem uma amante. Diálogos longos (muitas vezes longos demais) sobre arcadas dentárias e compras de Natal. O filme dá uma guinada quando o marido resolve contar pra mulher que vai partir pra outra. A mulher tira os óculos, dá alteração e o marido (a parte mais interessante do filme) não reage. Deixa o caos se auto-organizar. Ele é bem wu wei, filosofia oriental que preconiza que "tudo aquilo a que você resiste, persiste."

25/09, dia 2, "Ao mar", de Pedro Gonzalez-Rubio (México, 2009)

Mogli mexicano. Linda fábula sobre o encontro na natureza entre pai, avô e filho, um adorável menino de cinco anos. O filme quase inteiro se desenrola no Banco de Recifes de Chinchorro, um paraíso aquático no México. O pai, que separou-se da mãe italiana do menino, quer deixar-lhe como legado o seu dia-a-dia e a sua lida de pescador e amante do simples e do belo, já que Natan deve voltar para Roma no fim do filme. A câmera naturalista mostra tudo como é e isto encanta, exceção feita para os vegetarianos, por conta das muitas cenas dos peixes se debatendo antes de morrer. Destaque para a garça "Blanquita", que se torna amiga de Natan e de seu pai, para o choro do menino ao se despedir, para a natureza deslumbrante e para duas frases que pontuam o filme: "no hay pressa de llegar" [no hay mismo] e "velhos são os caminhos, nós continuamos andando." Partiu ao mar!

25/09, dia 2, "Nossa vida exposta", de Ondi Timoner (Estados Unidos, 2009)

O palhaço Luvvy tá querendo aparecer. Doc multi-facetado díficil de digerir, mas que fica depois do filme como tema a ser investigado, debatido e deglutido. O protagonista é Josh Harris, um filho mal-amado que cresce e resolve aparecer sendo diferente dos demais. Nos anos 80, antevê que a Internet e a evasão da privacidade moverão o mundo. Ganha milhões com projetos de sua autoria como um bunker onde confina na virada do milênio dezenas de pessoas filmadas em todos os seus movimentos. Há uma sala com armas (sic), uma câmara de torturas (sic), drogas liberadas, etc, etc. No projeto seguinte, se auto-confina com a namorada. O viés do doc é: a tecnologia vai dominar as pessoas. Será? Josh pintou na tela como um cara extremamente egocentrado. A impressão que fica é a de que não importa a plataforma, o seu negócio é aparecer de qualquer maneira. Não há mocinhos nem vilões, mas um tema a ser debatido.

24/09, dia 1, "Amores Imaginários", de Xavier Dolan (Canadá, 2010)

Raspas e restos [não] me interessam. Triângulo amoroso não consegue emplacar o clássico quem-come-quem. Amigos, Francis & Marie, se apaixonam por Nico, novo amigo recém-chegado do interior, mas ambos se frustam, se estranham e deprimem. Nico é solar e fugidio, tem um quê de "Morte em Veneza" e de Louis Garrel, que aliás, faz uma ponta no filme. O excesso de cenas fragmentadas, de depoimentos dor-de-cotovelo de quase-anônimos e do uso do slow motion provoca um distanciamento entre o espectador e os personagens. Empatia também é quase amor. Ficou faltando. Vale registrar que os meninos são gatinhos e o Canadá rural é lindo.
Foto: Isabella Lychowski

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